Renatto Mendonça
27/08/2020

“O que te move?
O que te paralisa?
O que te desvia?”
Tal qual a metodologia das escolas de teatro para iniciantes, este filme se apresenta
como um JOGO. Um jogo entre linguagens artísticas, um jogo de expectativas, um jogo de
trocas humanas. Talvez embebidos pelas próprias filosofias sustentadas, todos os
dispositivos apresentados se mostram exercícios de coletividade. Sete jovens dividem
palco, ensaios e experiências revelando suas relações entre si, com a arte e com o mundo.
Salta, de todos eles, o desejo pela busca de uma verdade interna, que se desdobra no
desenho da expressão corporal como força mística, a vontade da representação como
instrumento político de ocupação.
O discurso fílmico se inscreve na perspectiva das religiões yorubá e o faz não de
modo panfletário, mas como um espelho refletido desta cosmovisão. Todas as
manifestações estéticas (físicas e extracorpóreas) operam para fins de aglutinação e
resgate. Tudo aponta para a expansão das unidades inteligíveis já (re)conhecidas - estão os
elementos da natureza, a matéria e a subjetividade vibrando em uníssono no fazer artístico
desses jovens - de modo a traduzir esteticamente esta impressão no filme. Esta
compreensão mais harmoniosa da existência costuma ser recorrente nas religiosidades
estigmatizadas como primitivas.
Como documentar o espiritual? O pulso vital pretendido dispõe de traços de
ficcionalização, mas, mais do que isso, percebe-se um esforço bem-sucedido no que diz
respeito à exploração do potencial simbólico-reflexivo das formas do real, isto é, logrando
perfurar a camada da literalidade para preencher virtualmente as imagens de sentidos e
possibilidades a partir de sua contextualização.
Dentre dezenas de exemplos possíveis, tomemos as sequências alusivas ao mito da
criação: pernas numa canoa inundada por águas turvas, homem se torna lama, que se
torna carne, que se torna água e assim conhecemos a organicidade de um ciclo
ininterrupto. A criação do ser humano foi possibilitada quando Nanã, unindo forças a Oxalá,
coletou lama do fundo de um lago permitindo que este moldasse o corpo que receberia o
sopro sagrado de Olorum. O homem dança no rio sobre sua própria substância.
Entre performances, rituais e fluxos de vida cotidiana, presenciamos a celebração do
corpo enquanto palavra, da palavra enquanto imagem e da imagem enquanto corpo,
flutuando pelas zonas limítrofes e difusas deste tríplice suporte na apreensão do mistério
como sentido norteador.

Alinhando-se às tendências globais dos movimentos negros pela luta antirracista, o
filme atua no reposicionamento de um paradigma através de uma mudança de tom
explicitada na fala de um dos personagens:
"Nossa história está sendo contada pela gente agora. Agora é a nossa hora de poder refletir
e passar esse conhecimento como uma questão de luta, de empoderamento, e não mais de
tristeza [...]"
Se, para além da narrativa, incorrermos na leitura deste como sendo um dos
primeiros longas da incipiente cena alagoana, germinado sob os domínios de um Estado
que, desde sua formação e subsequentes reformas, projetou sistematicamente o
apagamento de tais expressões, o filme ressoa com um eco ainda mais categórico. A figura
do cavalo, símbolo de poder e progresso (para quem o domina), em desconformidade com
tal ordem é, por fim, a liberdade daquilo que outrora serviu para proporcionar a liberdade
alheia.